“free tours”, saiba quem paga a conta

free tours, Barcelona

Os free tours, os passeios guiados gratuitos, passaram a ser um elemento essencial da paisagem das cidades turísticas do planeta nos últimos anos. Seu apelo é inquestionável, quem não adora o free? Já tivemos vários leitores do passaporteBCN que compartilharam com a gente, nas caixas de comentários, seu entusiasmo pelos free tours na Ciudad Condal.

O propósito do presente texto é desvendar a realidade por trás dos free tours, questionar que eles realmente sejam gratuitos e provocar nos turistas mais conscientes uma reflexão sobre o serviço dos free tours. A final de contas, você não acha estranho um serviço profissional gratuito? Você deixaria sua boca nas mãos de um dentista “gratuito”? Você acharia normal que um taxista oferecesse serviços de transporte “gratuitos”?

Vamos falar sobre Barcelona, mas quase tudo o que descrevemos aqui é válido para os free tours em outras partes do mundo.

free tours, Barcelona

Vários tipos de free tours

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que há diferentes grupos, empresas e instituições que oferecem free tours:

  • o escritório local de turismo, que pode organizar visitas guiadas, habitualmente lideradas por funcionários da prefeitura ou o governo local.
  • um hotel ou um hostel, que pode oferecer alguma atividade cultural para seus hóspedes, contratando um guia para realizar o serviço.
  • um grupo comunitário ou uma instituição histórica, que também podem oferecer visitas guiadas.
  • uma empresa privada especializada em free tours.

Nossas colocações no presente texto referem-se unicamente a o último grupo da lista, tours gratuitos oferecidos por empresas privadas. Não vemos absolutamente nenhum problema nos tours oferecidos pelos primeiros três grupos, pelas razões que vamos expor a seguir.

Free tours, um grande negócio

Os free tours são hoje um grande negócio. Sandeman, a empresa pionera, oferece tours em mais de 20 cidades do mundo, enquanto inúmeras outras replicam seu modelo de negócio. Caminhar pelo centro de Barcelona, ou de qualquer outra grande cidade turística, sem se topar com um free tour, é uma grande façanha.

Onde está a mágica do negócio?

Os free tours são um grande negócio porque os custos envolvidos são muito pequenos. Não existe aluguel do espaço, a cidade é de todos e não existe nenhuma cobrança pelo uso de um espaço público para a geração de lucro para uma empresa privada. Também não existe nenhuma cobrança de impostos por essa atividade (na verdade, existe sonegação maciça dos impostos que deveriam ser pagos para exercer essa atividade econômica). Mas, ainda mais importante, os guias que prestam o serviço para as empresas não são funcionários, nem sequer existe qualquer tipo de relacionamento trabalhista entre empresa e guia. Não existem salários, não existe previdência social, não existe seguro de saúde. É o sonho ultraliberal feito realidade. Trabalhadores que não recebem salário mas geram lucro para a empresa!

Vamos ver a seguir como é que é gerado o lucro para a empresa e qual é a situação do guia que lidera os free tours.

Como funciona um free tour

Como turista, você já sabe como funciona um free tour. No horário conveniado, você se apresenta em um ponto turístico da cidade e aguarda, junto com outros turistas, até o começo da visita. As visitas costumam acontecer exclusivamente em espaços públicos, sem entrar em monumentos, até porque os guias não estão autorizados para realizar esse tipo de acompanhamento. No final da visita, os turistas são convidados a mostrar sua gratidão deixando uma gorjeta para o guia. Quem quiser deixa gorjeta, quem não quiser, não deixa.

Para o guia, é um pouco diferente. Ele cadastrou seus serviços com a empresa que oferece os tours. A empresa encomenda ao guia diferentes horários ao longo do dia durante os quais vai emprestar seus serviços.

No começo do passeio, se você não deixou seu nome em um formulário com a lista de participantes, o guia poderá propor que seja feita uma foto do grupo para colocar “nas redes sociais”. Na verdade, a razão da fotografia do grupo é poder calcular o número de assistentes em cada passeio. Por quê? Porque o guia precisa pagar uma taxa para a empresa, taxa que é calculada em função do número de participantes no tour. Esse valor pode estar entre os 2€ e os 5€ por participante, dependendo da empresa e do destino. A empresa justifica a cobrança da taxa pelo trabalho de márketing, divulgação e organização dos tours. Até aí, tudo bem. Isto é, no caso de um relacionamento trabalhista legal, com contrato de trabalho e salário pago pela empresa ao guia. O problema é que a realidade é bem diferente.

Imagine essa situação; se o guia estiver levando um grupo de 30 pessoas e a taxa for de 4€ por pessoa, no momento de começar o tour, o guia está devendo 120€ para a empresa. Aqui está a importância de conseguir uma boa gorjeta. Se a gorjeta total dada pelos assistentes for inferior a 120€, o guia vai ter pago para trabalhar. Sim, é tal qual, o guia vai ter pago para ter o privilégio de levar você pela cidade. Se a gorjeta for igual a 120€, o guia vai ter trabalhado em troca de nada. Qualquer quantia acima de 120€ é o “salário” do guia.

Agora você vai entender melhor a simpatia do guia, as piadas, o bom humor. É importante criar uma atmosfera favorável à uma generosa gorjeta.

Exploração laboral

A principal razão pela qual tentamos desincentivar que nossos leitores participem em free tours é que são um exemplo extremo de exploração laboral. E resulta inexplicável que as autoridades tenham permitido que a atividade seja desenvolvida durante tanto tempo, vulnerando toda e qualquer legislação trabalhista (as atividades da Sandeman já foram expostas há váios anos na Alemanha, onde a prefeitura de Berlim obrigou a que os guias de free tours fossem contratados pelas empresas que representam). Mais recentemente, a prefeitura de Florença tornou ilegal a atividade dos free tours.

Pode até ser que exista quem concorde com a prática. Mas queremos pensar que, para a maioria dos nossos leitores, um mercado laboral onde você trabalha em troca de uma (incerta) gorjeta não forma parte do seu modelo de sociedade, não é o que você desejaria para você, sua família ou seus filhos.

Vale a pena salientar que as empresas tomam bastante cuidado em esconder dos clientes (você, turista), como funciona o sistema. Isso acrescenta um fator de desonestidade na proposta dos free tours. É muito provável que, ao saber que o guia não conta com nenhum tipo de contrato, seguro ou remuneração fixa pelo serviço prestado, alguns turistas desistiriam da proposta, enquanto outros cogitariam deixar uma gorjeta ainda maior (momento no qual o free tour deixaria de ser verdadeiramente gratuito).

Se a situação é tão precária, porque há pessoas que queram trabalhar como guias? O explorador depende da existência de pessoas dispostas a serem exploradas, e o caso dos free tours não é diferente. Em geral, os guias costumam ser pessoas jovens, estudantes morando no exterior e procurando ganhar um dinheiro extra, ou pessoas fora do mercado de trabalho para quem os free tours oferecem uma fonte, mesmo que precária, de renda. A rotatividade é muito alta, poucos conseguem aguentar durante muito tempo em um trabalho que é pago com gorjetas.

O impacto dos free tours nas cidades

O crescimento descontrolado do número de free tours nas cidades mais turísticas (é um grande negócio, como já vimos acima) está tendo um grande impacto na paisagem urbana. A sensação de estar disputando o espaço público com hordas de turistas é cada vez mais real. As estreitas ruas dos bairros da Ciutat Vella ilustram esta situação. O Mercat de la Boquería teve que proibir a entrada dos grupos em determinados horários pela confusão que causavam.

Somos cada vez mais turistas, e a multiplicação dos grandes grupos associados aos free tours contribui a uma degradação da experiência turística.

Diga não aos free tours

Sabemos que a tentação de aceitar um produto gratuito é irresístivel. Mas queremos tentar incentivar uma proposta de visitação turística das cidades que mantenha uma grande distância dos free tours. As razões, expostas acima, podem ser resumidas aqui:

  • trata-se de um modelo de relacionamento trabalhista que beira na escravidão. Porque quem trabalha sem receber um salário em troca não pode ser definido de outra forma. Os guias dos free tours ainda arriscam ter que pagar para trabalhar!
  • é um negócio que sonega maciçamente impostos, ao não existir nenhum contrato entre prestador de serviço e usuário. As tais gorjetas, na verdade, viram fonte de ingressos para o empresário, que não paga um cêntimo de impostos sobre a renda obtida.
  • contribue a degradar o espaço público sem dar nada em troca (veja o ponto anterior).
  • exerce uma concorrência desonesta com os guias turísticos legais.

Para saber mais

Para quem quiser saber mais, vários textos em inglês e espanhol sobre o assunto: How free tours have become big business, Are free walking tours really free?, The ethics of free tours, El expediente de una falsa autónoma en una empresa de ‘free tours’ saca a la luz los abusos laborales en el sector, Los freetours aprovechan el vacío legal del sector turístico en Madrid e Lo que se llama economía colaborativa no tiene nada de colaborativa.

E não deixe de ler nosso texto sobre a autêntica catástrofe para Barcelona que tem sido o sucesso do AirBnb na cidade.

4 comentários em ““free tours”, saiba quem paga a conta”

  1. Totalmente de acordo. Uma coisa a ter en conta é que uma ou um guía oficial tiveram de estudar cinco anos de história, estudar como mínimo duas linguas alem de portuguēs e depois passar ums provas extremadamente difíceis.

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    • Obrigado, John. Esse assunto é complicado, porque na Espanha há muitos anos que não estão sendo abertas vagas para exame de guia oficial, o que pode ser visto (justificadamente) como uma privilegiada reserva de mercado. Isso deveria ser resolvido já. Tem gente muito preparada para trabalhar como guia oficial que não está conseguindo o título simplesmente porque não há exames.

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